Preâmbulo

Arte: Carlos Saramago


Preâmbulo
Sobre a mesa dispuseram-se todos os utensílios necessários. São pincéis de todas as qualidades e matérias, cores de todas as origens, paletas já usadas, como caleidoscópios frágeis onde se aplica a matéria de forma incoerente para construir uma visão involuntária em pigmentos caóticos. Também há, pousados lado a lado, os produtos dissolventes dos quais emana o incomparável cheiro que inebria a mente, como se fosse das tonturas assim provocadas que nascessem as formas esculpidas na alma que permite o que outros chamam arte.
Sobre outra mesa, frente à primeira, um único objecto pousado. Ao contrário do habitual, a verticalidade foi esquecida, para lhe ser preferida a horizontalidade da tela. Como as crianças que pousam sobre a mesa de uma sala de aulas a folha branca antes de desenhar sonhos pueris com lápis de cor, a tela foi aqui disposta horizontalmente para permitir ao homem desenhar sonhos diferentes, nascidos numa alma despedaçada por visões estranhas acumuladas ao longo de uma vida desperdiçada no inútil.
Ao centro, entre as duas mesas, o rosto crispado pela concentração, os olhos perdidos em devaneios, as mãos ainda inertes, o artista observa sem ver. Descalço, deixa o frio do cimento que constitui o piso daquele lugar invadir a planta dos pés até ter a sensação de congelar por dentro. Só o acto de espalhar as cores na tela poderá aquecer um pouco as entranhas petrificadas. Mas, antes de chegar a esse ponto, será necessário vencer a luta que se trava no peito. Após tantos anos daquela prática a que tantos pretendem e que tão poucos conseguem, o homem sabe que só o resultado da batalha interna, seja ele uma vitória triunfante ou uma derrota amarga, permite libertar as mãos que serão, em seguida, capazes de aplicar, de forma aparentemente incoerente, as cores na tela que aguarda.
Em silêncio, o artista parece conversar com a matéria ali disposta. Faz parte da luta e há muito que o devaneio insano que ameaça em permanência virar loucura pura, foi aceite. Se existe risco de afundar-se na irrealidade, nunca o calculou e não deseja sequer considerá-lo.
Nele, nasceu aquela sensação terrível que acelera o ritmo cardíaco, faz tremer os membros e embacia a visão. Já o tinha sentido nascer desde que ali entrou, e agora pode aceitá-lo: o medo! O que o motiva é inconcebível, inexplicável. E ninguém pede explicações. Por desagradável que seja, é essa sensação que desperta algures nos meandros do cérebro a produção da adrenalina que se espalha rapidamente pelas veias.
As mãos começam a tremer. É incontrolável mas o homem aprendeu há muito a não tentar controlar. Por fim, pega no material que o seu instinto escolhe e dirigindo-se à tela, numa voz que não é a sua, diz:
- Permite-me derramar sobre ti uma parte de mim!
Dulce Morais

6 comentários:

  1. Dulce, não imagino um melhor começo teu neste espaço! Gostei muito, parabéns pela tua sensibilidade!
    Um beijinho!

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  2. Este texto é arte sensível que flui entrelaçada à inteligencia. Soprou poesia.
    Um dos mais lindos e perfeitos que já li. Parabéns Dulce.bjs.

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    1. Muito obrigada, Lourdinha!
      Fico feliz que tenha gostado!
      Bjs!

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